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Pra não dizer que flores não falam - Final 1°Ato

“Estou para realizar a minha última viagem, um grande salto no escuro.”– Thomas Hobbes

A noite parecia distante. O silêncio parecia solene. As pessoas pareciam inertes. Em nenhum olhar Dália enxergava um brilho qualquer, uma desculpa qualquer que a fizesse mudar de idéia. Todos pareciam vazios e sem vida, andando também sem direção. Talvez os andarilhos daquela madrugada insone caminhassem para o mesmo fim que ela, mas em pontos diferentes da cidade.

“qual a grande busca de todos?” “se colocassem as mãos no que mais desejam e percebessem que aquilo também nãos os preenche, o que fariam?”

Frases das paredes lhe assaltavam a memória.

Nos seus passos não havia medo, nem ansiedade. Era como se aquilo devesse acontecer e ela compreendesse o motivo. Nas costas, entre a calça e a pele, a arma lhe lembrava, presa na cintura, que o dia sempre amanhece, independente dos olhos abrirem ou não. Para quem o sol mostraria sua luz? Que quarto ele invadiria? Que tipo de pessoa iria acordar irritado e preguiçoso? Quem tomaria aquele café requentado sem ao menos saber que em pontos da mesma cidade, pessoas morrem em silêncio? Ela se divertia criando histórias possíveis, realidades que ela nunca viveu.

Uma lâmpada, de um poste piscava prestes a apagar. Não conseguia manter a própria luz estável. O zunido fazia parecer que lutava para se manter luzindo. Dália sorriu. Um poste, naquela madrugada, era a única coisa que a compreendia sem ela precisar dizer uma palavra.

...

Eduardo levantou bem antes que o despertador ligasse. Eram 3h47. Sentou na cama absorvendo o silêncio da casa. Levantou. Coçou a bunda e andou em direção ao interruptor. A luz foi acessa. Havia alguma coisa diferente que ele não sabia o que era, apenas percebia. Pegou o maço em cima da escrivaninha. Tirou um cigarro. Com ele na boca, ainda apagado, notou a arma, ou melhor, a falta dela.

- Dália...- gritou do seu quarto, mesmo sabendo que não haveria resposta.

Saiu pelo apartamento ascendendo às luzes. Alguns móveis fora de lugar. Entrou no quarto onde ela deveria estar. A luz já estava acessa. No colchão viu um caderno aberto. Leu as últimas coisas e sentiu um frio mórbido invadir sua mente.

- Desgraçada...

Vestiu as roupas de qualquer jeito. Com o caderno embaixo dos braços, pegou as chaves do carro. Iria seguir seus instintos para encontrá-la, mas não nutria nenhuma esperança.

...

Algumas coisas a vida nos ensina no desespero. Foi assim que Dália aprendeu, naquela noite, a abrir o tambor e retirar as quatro cápsulas, deixando apenas uma para o primeiro jogo de sorte.

Estava num beco. Pouca luz. Pouco movimento. Pela primeira vez sentiu o tremor lhe tomar o corpo. Olhou a arma. Uma comoção lhe invadiu. Sentiu as bochechas quentes. Os olhos enchendo de lágrimas. Isso era tudo o que sua vida havia produzido?, pensava. Tiraram sua pureza, suas centenas de possibilidades, e agora era sua vez de tirar alguma coisa da própria vida. Girou o tambor. Prendeu a respiração. Levou o cano até a cabeça. Pensou no urso que havia ganhado naquele parque. Fez o primeiro disparo. Tudo o que ouviu foi um barulho seco. Apenas um estalido. Soltou a respiração com força, engasgou com a saída e entrada de ar. Tossia, sorria e chorava. Não sabia se aquilo significava sorte ou azar. Aumentaria a adrenalina. Inseriu mais uma cápsula. Agora eram duas em cinco para ganhar ou perder. Girou o tambor. Prendeu a respiração. A mão não tremia mais.

“A vida é uma só e ninguém nunca sabe de fato o que há no outro lado. Tudo o que sabemos sobre vida eterna está em livros de pessoas que já morreram.”

Outra frase de parede e depois de mentalizá-la, como uma reza, fez o disparo.

...

                Eduardo havia rodado pelos quarteirões. Dirigia devagar. Olhava cada andante nas ruas. Sem sorte, decidiu ir até onde ela morava, talvez lá houvesse algo que lhe desse uma direção.

Estacionou o carro um pouco longe. Observava aquela rua de certa distância. Precisava se assegurar que camaradas como aquele velho não estariam por ali, esperando um vacilo do “herói” inoportuno ou da mocinha descontrolada.

O tempo que se deu foi o de uma tragada. Enquanto o cigarro ia sendo consumido e virando cinzas não percebeu nada. Nenhuma movimentação, então se sentiu mais seguro. Jogou a bituca e caminhou firme, dessa vez sem ter a segurança que carregava na cintura.

Descobriu, na casa, que não havia luz. Usou a lanterna do celular para iluminar o espaço e sua atenção foi sugada pelas palavras em vermelho que enchiam as paredes. Não teve como, ele começou a lê-las. Sem tempo para ler tudo, sete ou dez frases depois iluminava as paredes do outro cômodo e nelas também haviam vozes em textura de giz. Não sabia o que pensar a respeito. Lembrou do caderno. Correu para o carro. O pegou em cima do painel. Dessa vez abriu nas primeiras páginas. Encostou-se no carro. Lia concentrado cada texto. Aos poucos foi entendo a história inteira. Coisas que ninguém ouviu, ali, em linhas retas pré-impressas. Garranchos, rabiscos, desenhos, confissões diluídas em papel reciclado. Entendeu o desespero de Dália.

Lendo as histórias da escola onde ela estudou e as referências a uma casa grande e luxuosa ele soube onde poderia arriscar tentar encontrá-la, ou talvez a mãe, esperando não ser tarde demais.

...

Dália permanecia com os olhos fechados. Outro som seco. Duas chances em cinco e ela ainda respirava. Ajoelhou, tomada por uma fraqueza súbita. Sentiu-se privilegiada pela vida insistir em vê-la por mais alguns instantes. Não havia foice, mas sabia que a morte estava ali, paciente, esperando.

- Duas em cinco e eu permaneço viva...vamos a última roleta. Vamos testar cinco em seis. Cinco cápsulas e um espaço vago. Que a sorte e o azar joguem, e que ganhe o melhor. – ela sussurrava, ofegante, suando frio.

Pegou as três cápsulas que estavam fora do tambor e as inseriu. Percebeu uma movimentação por ali. Resolveu que o último jogo de roleta seria em outro lugar. Iria ser na frente de onde tudo havia começado. Se a arma disparasse o jogo terminaria, se o som seco soasse outra vez ela retornaria para vida que tentou fugir. Foi esse o trato que fez consigo mesma.

Levantou e, como quem aprecia os últimos instantes de consciência, caminhou em direção a seu glorioso palácio. Não era tão perto quanto gostaria, mas sentia que esse seria o fim ideal.

...

Eduardo não sabia ao certo onde era a casa. Ouviu a respeito dela algumas vezes. A escola ele conhecia. Foi até lá, na esperança de encontrar algum moribundo que soubesse lhe indicar a casa de luxo.

Não havia muitas pessoas na rua naquele horário e na escola nenhum zelador. Perto dali havia um bar de aparência bem precária. Tentaria a sorte.

Lá dentro somavam quatro com o cara atrás do balcão.

- Boa noite.

Todos o encararam. Sérios. Ninguém respondeu. Nos rostos dos três moribundos o suor seco de dias sem banho. O garçom limpava os copos sem dar importância ou atenção a nada a sua volta.

- Alguém poderia me dizer onde encontro uma casa de luxo pra... enfim. É aqui perto?

Continuaram sem responder.

- Certo. Não sabem... – olhou para o garçom – Ei, me vê uma vodka com água.

- Quem procura casa de luxo tem dinheiro. – disse um dos três fregueses da casa.

Era um gordo troncudo, de 1,90m, apoiando a mão no balcão e mostrando um sorriso amarelo de quem encurrala uma presa fácil.

- Ramirez, no meu bar não! – alertou o garçom.

- Tá a fim de se divertir também gorducho? – perguntou Eduardo.

- Como que é? – cerrou os punhos se sentindo ofendido.

- Eu pago a sua lá. Você sabe onde é a casa?

- Viu Ceará, o sujeito é amigo. Ninguém ta querendo zoar seu bar. – Ramirez sentou no banco ao lado de Eduardo.

- E então? Sabe ou não sabe como chego lá? – Eduardo falava sem lhe dirigir atenção. Seus olhos observavam Ceará preparando sua bebida.

Ceará colocou a vodka com água na frente do Eduardo.

- Sei sim... e você sabe, toda informação por aqui tem um preço. – soltou uma gargalhada sem sentido, mostrando dentro daquela boca uma língua de superfície branca e porosa.

- Ceará – perguntou Eduardo – como anda a fiscalização do seu bar? – disse isso dando um gole e olhando fixo para o rosto do garçom.

O silêncio e os olhos que se estalaram, mostrando um pavor que não deveria ser visto, deram a resposta que não saiu da sua boca.

- Imaginei. – Concluiu Eduardo levantando com o copo na mão.

- E então, tio. Vamos negociar agora ou depois? – Ramirez o seguia com os olhos.

O copo explodiu na parede sem aviso prévio. Todos abaixaram a cabeça. Eduardo pegou um dos cacos no chão. Levantou rápido e com uma das mãos pressionou a cabeça de Ramirez no balcão que respirava ofegante pelo susto e por sentir o caco no pescoço.

- Você ta maluco??? – gritou Ceará – Porque fez isso com meu copo?

- E então, Ramirez, vamos negociar. O que acha? – Eduardo pressionava a ponta do vidro – Os três aí: não tentem nenhuma gracinha. Eu só quero conversar com meu amigo aqui. E Ceará, nem pense em fazer o que acho que você está pensando, você não ia querer receber outras visitas aqui se gosta tanto assim do seu bar.

Ceará levantou as mãos para o alto.

- Agora acho que podemos conversar melhor, não é Ramirez?

- S..sim...e-eu só t-tava brincando c-cara!

A mão direita de Eduardo pressionava mais a cabeça dele contra o balcão.

- O acordo é o seguinte, você me fala onde é a casa e eu não faço jorrar groselha do seu pescoço.

Ramirez começou a rir talvez de nervoso. Parecia ter perdido a noção da realidade e agora brincava diante do risco.

- Você não teria coragem... me matar por uma trepada de luxo? – sua voz saía esnobada e o som saía espremido por Ramirez estar sendo pressionado.

Eduardo afastou a mão esquerda do pescoço. Olhou o caco e viu que era grande o suficiente. Fez um tipo de luva com a manga da blusa. Ainda pressionando a cabeça de Ramirez, cravou o caco na lateral da barriga, na região do rim.

- Vai querer saber se eu teria coragem de fazer uma cesariana também? – perguntava num tom neutro, como se não tivesse feito o que fez.

O corpo de Ramirez relaxou. Da sua boca, alem do bafo, saíam gemidos. Ceará deu um passo para trás.

- E aí gorducho? Uma informação e deixo o caco aqui pra ele continuar estancando o estrago. Não me obrigue a...

- Ok, rapaz. Chega. Você já fez muito por hoje. – pediu Ceará.

- Onde é o lugar?

Ceará explicou, olhando o gordo no balcão. Eduardo soltou Ramirez, que parecia ter pequenos espasmos. Os outros dois presentes no recinto pareciam manequins que não tem olhos para ver o preço de nada e nem pagariam para ver. Permaneceram quietos, parados. Eduardo já havia saído do bar.

- Você sabe que eu não vou deixar isso barato, não é? – gritou Ceará sem obter resposta.

Eduardo se dirigiu ao carro. Ele realmente não possuía filtros. Aprendeu a ser assim, a fazer valer apenas seu senso de justiça e ser homem o suficiente para arcar com quaisquer conseqüências advindas disso.

Não sabia o que iria fazer quando chegasse na casa, mas como qualquer outra ação que costuma cometer preferiu deixar para ver como a coisa fluiria.

Em sua cabeça já era tarde demais para qualquer tipo de heroísmo estúpido. O que conseguiria salvar as 4h18? Agora pensava em como iria recuperar a arma, dado a ele pelo avô quando era menor de idade.

Ele tinha 13 quando ganhou o “presente”. Ajudava seu avô atrás do balcão. A mercearia era um negócio de família. Naquele final de tarde dois sujeitos entraram encapuzados. O avô preocupado com a segurança do neto saiu de trás do balcão para tentar negociar com os delinqüentes. Eduardo preocupado com o avô pegou a arma em baixo do balcão. Andou devagar para ficar atrás do seu pai de consideração e não ser percebido. Realizou o primeiro disparo no instante em que percebeu um dos dois colocando a mão na cintura. O tiro acertou o seu velho e os ladrões fugiram assustados. Eduardo ficou parado olhando a figura do avô deitada no chão. Não havia entendido direito o que acabara de fazer, mas sabia que tinha sido errado. Correu para trás do balcão. Escondeu a arma embaixo de uns panos surrados. A avó apareceu em seguida, tremendo, e a única coisa que conseguiu fazer foi gritar ao ver o marido estirado. Eduardo nunca contou a versão oficial. Sua avó faleceu muitos anos depois acreditando que o velho havia sido morto pelos bandidos.

Agora com o carro estacionado na esquina, viu como era imponente a casa de luxo. Havia muita iluminação, música e uma movimentação bem fraca de homens que entravam. Deu mais uma tragada, seu tempo para pensar em alguma coisa. O cigarro se desfez depois de 7 minutos. Ainda não tinha um plano. Abriu a porta do carro e foi em direção ao casarão. Iria tentar encontrar Margarida e ver no que aquilo iria dar.

Colocou as mãos no bolso. Apertou o passo.

- Hahahaha... garoto? – disse uma voz imponente atrás dele.

Eduardo virou. Tudo o que conseguiu foi arregalar os olhos.

- Que sorte a minha e que petulância a sua, hein. Não imaginei que iria te encontrar tão cedo. O que é? Dália fugiu? Hahahaha... ela é quente, não é, garoto? Não imaginei que ela fosse te contar onde vive e trabalha. Você a expulsou de casa e veio pedir desculpas?

Eduardo cerrou os punhos e foi para cima.

- Eu não faria isso se fosse você. – dizendo isso sacou uma arma – Eu estava desprevenido mais cedo, sabe como é, e olha que eu não sou de andar de mãos abanando. Como eu queria encontrar você, garoto. Você é durão. Gosto disso. Será que fura?

O capanga do velho se afastou do patrão e foi, sorrindo, para trás de Eduardo. Cercando-o mantinha tudo sob controle.

- Eu não sei se consigo errar um tiro como você, viu. – engatilhou.

- Não, Portello! – uma voz feminina, embargada, surgia atrás dele.

Portello não virou. Ele começou a rir e continuava olhando para Eduardo.

- É você minha rainha???

- Sim.

Dália já vinha na mesma calçada. O capanga não tinha a visto se aproximar sorrateira e o velho era grande o suficiente para tapar a figura da sonhadora.

- Sabia que você voltaria para mim. O que temos é verdadeiro. E eu já te perdoei de tudo.

- Abaixa a arma, Portello. – pediu Dália.

- Sem caridade hoje, Rainha. Tô sabendo que ele te tratou mal e você lembra o que ele fez hoje...

Ela engatilhou a arma e tentou deixar o braço firme.

- Abaixa a arma, Portello. – ela pediu mais uma vez.

- Nem banque a esperta. - disse o capanga sacando a arma e apontando para Dália.

- Vocês dois estão juntos nisso??? Pra cima de mim, Rainha? Depois de tudo o que fiz por você? E nossa história? Hahahaha... Garoto, eu não sei se acabo com você ou com ela primeiro. Quer escolher?

- É só abaixar a arma, Portello. - Dália ia pegando mais firmeza e direcionando toda sua frustração e raiva para o alvo a sua frente. A voz não estava mais embargada.

- Hahahahaha... Vocês estão dando a melhor noite da minha vida! – Portello ria enquanto uma gota de suor descia pelo seu pescoço.

Eduardo permanecia com as mãos no bolso, encarando o velho e deixando aparecer um sorriso pequeno no canto da boca, um sorriso de escárnio.


A morte aplaudia, sentada numa mureta. Ninguém iria passar por ali enquanto ela não tivesse alguém para levar. Sua gargalhada e excitação não podia ser ouvida e nem o brilho nos seus olhos, de pura expectativa, podiam ser vistos. Esperava, ansiosa, para saber quem seria o primeiro a atirar.

(continua...)
       Ellion Montino

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