“Mesmo no caso da esperança ser muito pequena, não
tenho o direito de não usar todas as minhas possibilidades”– Kafka
O silêncio havia se apoderado
entre os três. Dália tapava os ouvidos e permanecia com os olhos fechados.
Podia se ouvir as janelas sendo fechadas, outras sendo abertas. No cano do
revólver um filete de fumaça brincava no ar.
O velho olhou atrás de si e viu o
furo na parede. Deu uma risada doentia. Soltou Dália.
- O primeiro errei de propósito. O
segundo não será assim.
- Moleque, você é um figurão. Tem
coragem. Gostei disso. – ele dizia recuperando uma postura arrogante em hora
desapropriada. – Viu Dália, viu o que ele foi capaz por você? Ham? Viu? – dizia
aproximando o rosto do seu ouvido.
O gatilho foi ouvido outra vez.
Agora as mãos estavam mais firmes. Posicionou melhor os pés.
- Hahaha... já estou indo garoto. –
olhou para Dália – Eu volto e não será pra conversar.
Portello ergueu os braços como
quem diz que se rende. O sorriso sarcástico, no rosto, ainda permanecia. Passou
a mão na parede onde a bala estava alojada.
- Espero que tenha um plano, garoto.
– meteu a mão no bolso e caminhou em direção ao seu carro.
- Não, Portello!! Espera. – Dália,
não conseguia se mexer.
- Até breve, Rainha.
O carro foi embora.
- Seu maluco!!! Maluco!!! Quem
mandou se meter na minha vida?
Dália permanecia no chão, ainda em
choque. Pensava em quando que sua vida havia se descarrilado. Pensava que não era isso
que imaginava para si quando tinha seus 14 anos. Sentia os nervos se aflorando,
e a morte salivando de ansiedade pelo prenúncio de um novo corpo para carregar.
- E aí, vai ficar na calçada mesmo,
fazendo o típico papel de vítima? – ele perguntou guardando a arma e em seguida
pegando um cigarro do maço.
Ela levantou. As pernas ainda
bambas. Entrou em casa. Pegou uma mochila qualquer. Enfiava o tanto de peças de
roupa que cabia ali. Por último guardou o caderno. Saiu bufando em direção ao
homem que supostamente a salvara.
- Escuta aqui, eu não preciso de
um herói! Que tipo de pessoa sai atirando por ver uma discussão na rua?
- O tipo de pessoa como eu. Digamos
que eu não tenha um filtro. Tudo o que eu faço ou digo obedece a algo que eu
chamo de franqueza radical. Faço o que acho que devo fazer.
- É mesmo? – Dália caminhou na
direção do carro dele e jogou sua mochila lá dentro.
Ele a observava, dando uma tragada.
- Certo, agora você é problema
meu. É isso?
- Você vai me dar uma carona.
- Entendo. Mas você está mais
calma, honey?
- Quê?
- É, não quero nenhuma histérica
do meu lado. A propósito, aceita um cigarro?
- Não fumo.
- Ok. Pegou tudo o que acha que
precisa?
- Sim.
Ele se dirigiu ao carro, entrou.
Ela fez o mesmo.
- Você não vai pra delegacia não,
né?
- Não.
- Onde você vai me deixar?
- Você tem pra onde ir?
- Não.
- Entendo. Então você vai pra casa. Tem
um quarto de visita por lá.
- Ótimo.
- Ótimo? Não vai agradecer?
- Não. Esse é o preço que se paga
por entrar em histórias que você não conhece.
- Hahahaha... gostei de você.
Parece comigo. Dália, né?
- Isso. E você?
- Eduardo.
- Certo. – ela não tirava os olhos
da pista.
Foram o resto do caminho em
silêncio. Ela passava na cabeça o filme de sua vida. Ali, no carro, diante de
um desconhecido ela poderia ser qualquer pessoa. Deu um suspiro fundo. Uma
sensação de alívio momentâneo ante o desespero de uma vida sem norte.
- Será só por essa noite. – ela disse.
- Eu espero que sim.
Eduardo morava num apartamento.
Colecionava discos de vinil. Tinha problemas com a síndica. Possuía um quarto
repleto de livros. Dália, dormiria ali. No apartamento
conversaram pouco.
- Quer me dizer sobre você e sobre
aquilo na calçada?
- Não.
- Certo.
Ela viu onde seria seu quarto e
permaneceu lá dentro de porta fechada, como fazia na grande casa, antes de ser
apresentada como Rainha da Noite.
Não conseguiu dormir. Filosofava
sozinha. Sozinha. Começou a escrever.
“As aparências são a moeda de
troca. Eu valho o que pareço e nunca o que sou. Ser nem sempre é válido e é por
isso que todos fingem. Meus pensamentos e idéias seguidas da minha história
podem perder o quanto valem. O sentimentos também seguem junto nessa lógica. Os
seres humanos gostam do "pé atrás". Seres humanos amam a segurança. O valor de
uma voz depende sempre de quem diz. Reputação. Nós amamos dizer quem merece nossos
ouvidos; nossos olhos amam dizer quem merece nossa atenção. Nosso juízo de valores
obedece o quê? Quem? Seu passado pode ser mais importante do que tudo o que
você pode se tornar no futuro e isso limita as relações humanas. Gostamos do
histórico. Gostamos de categorizar. Nesse jogo sempre haverá quem não tem
chances de sobressair. Você enxerga apenas com os olhos? Já se perguntou o que
seus olhos nunca vêem ou viram? Schopenhauer disse que importante não é ver o
que ninguém viu e sim pensar algo diferente daquilo que todos vêem. Quem vai
ensinar essa lição aos homens? Quem irá lhe dizer como utilizar os olhos? Meu
coração bate e nem sabe que o faz, ele não tem consciência, ele não sabe que
faz isso pra me manter viva. Dentro dele faço caber minhas vontades, desejos,
sonhos, esperanças, dores, tragédias, desânimos. O mundo cabe no meu coração e
ele pesa apenas 300g. 300g é o peso de uma vida interna, mas quem vê o coração?
Os olhos já não sabem filtrar e eu já não sei mais o que fazer. Na minha
mão poderia repousar uma responsabilidade que não é minha. Na minha mão poderia
repousar a sorte. Eu deixaria a sorte decidir por mim...”
As horas avançavam junto com o
ponteiro do relógio de parede. Num impulso súbito ela saiu do quarto. Revirou a
sala, gavetas, cozinha. Entrou no quarto dele e a viu em cima da escrivaninha.
A arma. O desejo de possuí-la a havia dominado. Dentro do tambor continham mais
cinco chances de redenção. Pegou a arma e saiu.
“...as melhores imagens que
carrego partem dos meus 15 pra baixo. Lembro de um parque onde decidi apostar
num jogo de roleta. O prêmio era um urso enorme. Ganhei e senti que em mim
havia toda a sorte do mundo. Uma roleta me fez pensar que o improvável sempre
esteve ao meu favor. Uma roleta e hoje um cara armado pensou estar fazendo o
bem. Arma. Roleta. Sorte. Já volto...”
Foi isso que escreveu antes de
andar pela casa, procurando paz de espírito de calibre 38, e sair para apostar na sorte.
(continua...)
Ellion Montino
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